De que forma o trauma do desenvolvimento afeta o cérebro?

Crescer em um ambiente marcado pelo abuso tende a afetar o desenvolvimento de uma criança
Crescer em um ambiente marcado pelo abuso, seja de ordem emocional/psicológica e/ou física, tende a afetar o desenvolvimento de uma criança. Para filhos e filhas de mães narcisistas, assim como de mães tóxicas, o trauma do desenvolvimento compromete a sua capacidade de viver uma vida plena e de realizações. Isso se deve ao fato de que o estresse ao qual são submetidos quando crianças exerce um impacto negativo em seu desenvolvimento neurobiológico. Indivíduos que, durante a infância, sofreram com a negligência dos seus responsáveis e/ou foram constantemente agredidos de forma física e/ou verbal e, como consequência, estiveram sob a influência frequente de intensos sentimentos de inadequação, tais como: a solidão, o medo, a culpa e a vergonha, apresentam cérebros programados no modo “sobrevivência”.
Na prática, este constante estado de alerta permanece devido ao alto funcionamento de certas áreas do cérebro, enquanto outras se mantêm inativas ou apresentam baixa atividade. A seguir, elencam-se as consequências mais proeminentes e que foram estudadas nos exames de imagem realizados em um grande número de pesquisas científicas referente aos efeitos do trauma na infância, juntamente com os seus efeitos nas vítimas sobreviventes:
1- Alta sensibilidade do sistema límbico
O sistema límbico, composto por estruturas como o hipotálamo, o tálamo, a amígdala e o hipocampo, é considerado o “cérebro emocional”. Esta área é responsável, entre outras, por detectar ameaças ao nosso bem-estar e nos mobilizar para uma resposta: a fuga ou a luta. Nos indivíduos cujas histórias pessoais de desenvolvimento incluem a negligência e/ou abuso, o sistema límbico (especialmente a amígdala) é hiperativo, ou seja, tende a responder muito mais fácil e rapidamente a supostas “ameaças”. No entanto, trata-se de uma reação exagerada que não reflete a realidade de forma acurada, na maioria das vezes, identifica perigos onde não existem e gerando estresse desnecessário.
Efeitos: índice elevado do hormônio do estresse – cortisol – no sangue, problemas de concentração, dificuldade de aprendizado, de manter metas, de se organizar e de regular as emoções, irritabilidade, insônia/problemas do sono, reflexo de susto exagerado, hipersensibilidade à luz e a sons, entre outros.
Uma das reclamações mais comuns de minhas clientes é que se consideram altamente reativas – ou que se abalam com grande facilidade – até quando reconhecem que as suas reações emocionais são desproporcionadas. Além disso, relatam que ao se sentirem afetadas emocionalmente, seja pela raiva ou ansiedade (em geral, causada pela preocupação excessiva), por exemplo, têm dificuldade de voltarem “ao normal” ou se desligarem destas com a agilidade de que gostariam.
2- Baixa atividade do córtex cerebral
O córtex cerebral compreende a parte do cérebro onde se originam os pensamentos analíticos e racionais, além de tratar de funções relacionadas ao aprendizado e à nossa habilidade de resolver problemas de modo objetivo. O córtex pré-frontal, em especial, é responsável pela reflexão balanceada e objetiva que permite ao indivíduo analisar e fazer planos, decisões e julgamentos baseado em comportamentos passados. Também é onde não só se avalia o próprio pensamento ou funções cognitivas (metacognição) (Fleming, Huijgen & Dolan, 2012), bem como regula os impulsos, as vontades, as compulsões e o comportamento nas interações sociais. Nas vítimas sobreviventes do trauma do desenvolvimento, a reatividade emocional é tão grande e a atividade da amígdala tão rápida e intensa, que tende a dominar o processo de interpretação de informação. Como resultado, o córtex, literalmente, “não tem chance” (Van der Kolk, 2014) de auxiliá-las a interagirem com o mundo a sua volta e com seus próprios pensamentos de uma forma equilibrada, adulta e sem a influência das crenças e emoções relacionadas ao trauma.
Efeitos: alta reatividade emocional (ex.: alta raiva e ansiedade que não diminuem com o tempo), temperamento volátil, dificuldade de criar e manter relacionamentos saudáveis e de regular as emoções, as vontades, os impulsos e os comportamentos nas interações sociais.
Este fenômeno é observado, de forma clássica, na atitude daquela cliente e filha de mãe tóxica/narcisista que, embora seja adulta, inteligente e tenha plenas condições de viver uma vida autônoma, sente-se como uma criança e totalmente pressionada pela própria inadequação. Portanto, assemelha-se ao indivíduo que primeiro age para pensar depois e, por consequência, arrepende-se seguidamente de seu próprio comportamento ou sente-se descontente com a maneira pela qual responde a situações estressantes ou que requerem uma atitude mais equilibrada e autocentrada. Quando se permite parar para pensar a respeito de si e suas opções de forma calma e centrada – tal como no ambiente da terapia – agem de maneira a, naturalmente, ativar as áreas de seu cérebro responsáveis pelo raciocínio objetivo, tal como o córtex.
Se você se identifica com os pontos mencionados, não é por ser “incompetente”, “burra”, “errada” ou “lesada”, mas porque está sofrendo com os efeitos do trauma do desenvolvimento. Estas reações não são aberrantes, mas normais considerando o contexto do abuso e da negligência ao qual foi submetida durante muito tempo. Neste sentido, o seu cérebro não é deficiente e exerceu perfeitamente o papel que deveria, ao tentar não apenas proteger os seus bem-estares físico, emocional e psicológico, assim como preservar o relacionamento com as pessoas responsáveis pela sua sobrevivência e que deveriam, em teoria, terem-na protegido e assegurado um ambiente familiar funcional e harmonioso para o seu desenvolvimento. Para lidar com os efeitos do trauma da melhor maneira possível, é vital que, em primeiro lugar, conscientize-se desta verdade.
Referências
Fleming, S. M., Huijgen, J. & Dolan, R. J. (2012). Prefrontal Contributions to Metacognition in Perceptual Decision-Making. J Neurosci. 32(18): 6117–6125. doi: 10.1523/JNEUROSCI.6489-11.2012
Van der Kolk, B. (2014). The Body Keeps the Score: Mind, Brain and the Body in the Transformation of Trauma. London, UK: Penguin Books.